12.9.13

O homem que não sentia




No momento em que nasceu já via-se que ele não seria uma pessoa normal. Depois das 26 horas de parto onde a mãe quase morreu ele, nos braços do médico, não proferiu nenhum som. Com os olhos já arregalados, olhando o mundo a sua volta deu um primeiro suspiro e ao tapa do médico apenas respirou com mais força como se dissesse “Ei, para, já sei como faz.”
Ganhou o nome de Pedro, dado pelo fanatismo da avó que na verdade sonhava em ter um neto chamado Jesus mas a mãe, em todo o seu ateísmo negou veemente tal pedido deixando apenas Pedro nascer. Aquele que traiu, arrependeu-se e negou Cristo por três vezes.
Nunca chorou nem jamais sorriu por maior esforço que seus pais fizessem, melhor, por maior esforço que suas babás fizessem. Nunca teve pais presentes e os mesmos nunca sentiram-se na obrigação de amar aquela criança. Assim sendo teve de tudo, menos amor.
Amor que nunca sentiu falta por que, na realidade, nunca sentiu nada. Com os anos passando ganhou a consciência de que era diferente. Via seus amigos de escola rindo, brincando, enamorando, divertindo-se enquanto ele sentava-se no canto escuro e observava tudo sem interesse algum, sem sentimento algum, apenas absorvendo racionalmente todas as coisas e todas as verdades que lhe eram recebidas por seus cinco sentidos. Cinco sentidos numa mente ausente de sentimentos.
Vivia nos cantos escuros das melhores escolas com as melhores roupas, os melhores acessórios, os melhores cadernos e as melhores canetas. Aliás as duas únicas coisas que realmente se apegava. Seus cadernos e suas canetas. Enquanto sentava no seu canto escuro observando o mundo sentir escrevia tudo que via.
“Carlos bateu em Caio debaixo da árvore do pátio número dois. Caio correu chorando e gritando e Camila abraçou-lhe. Ele parou de chorar e foram de mãos dadas sorrindo até a lanchonete. Eles comeram algo que não consigo ver daqui. Por que choram e riem? Carlos está vindo para cá.”
Até aquele momento ninguém havia tentado relacionar-se com ele. De maneira nenhuma, sendo com carinho ou com raiva ou com chacota. Carlos estava sendo o primeiro. Chegou debochando de Pedro e batendo-lhe no caderno que foi ao chão. Gritava palavras como “estranho, bizarro, viado” e Pedro, nos seus 10 anos, pouco entendia o que ele queria. Mas sabia que desejava infringir-lhe dor. Tentava entender aquele momento e deixou que o primeiro soco lhe acertasse em cheio a têmpora. Sentiu a dor física enquanto ouvia Carlos rindo do seu corpo curvado. Levantou-se sem muita diferença em sua expressão e encarou seu oponente. Carlos veio para cima novamente. Em toda a sua ausência de sentimentos seus sentidos eram absurdamente aguçados. Desviou do segundo soco, agarrou o braço do outro menino, apoiou-o no banco e com um pisão dilacerou-o em três lugares diferentes. Carlos urrava, branco de medo enquanto todos da escola envolviam-se num êxtase completo de medo, horror, amor e amizade.
Pedro sentou-se e fez suas anotações.
“Carlos chora quando sente dor. Caio sorri quando sente amor.”

Depois daquele incidente a escola nunca mais foi a mesma. Ninguém nunca mais chegou perto de Pedro e até mesmo os professores tinham medo de lhe perguntar o que quer que fosse. Passou com excelência em todas as matérias menos redação pois seu professor Álvaro disse-lhe que apesar da excelente qualidade textual faltava sentimento naquilo que ele escrevia e/ou descrevia.
No final do terceiro ano letivo, aos 17, foi de ônibus para a sua formatura pois seus pais estavam em uma viagem de negócios e lá chegou, ouviu seu nome, pegou seu canudo e seu histórico escolar e encaminhou-se para a faculdade fazer a inscrição enquanto os outros alunos beijavam-se e abraçavam-se numa felicidade que ele talvez nunca fosse sentir.
Percebeu que para sobreviver nesse mundo precisava pelo menos fingir que sentia. Na faculdade de artes cênicas aprendeu a sorrir, chorar, rir e amar. Passava horas defronte ao espelho de sua casa buscando as expressões mais perfeitas que pudessem passar o sentimento mais pleno. Depois de dois anos de ensaios exaustivos viu que o mundo curvava-se a ele. Na faculdade era admirado pelo seu esforço e pelo seu amor à arte.
“Se soubessem que não tenho amor pela arte e interpreto esse amor eles achariam ainda melhor” Anotava em seu caderninho.
No seu décimo nono aniversário beijou sua primeira mulher. A lambança das línguas e a avidez daquela fêmea esfregando-se em seu corpo não era entendível. Ela jogou-o para dentro de um banheiro e ele executava alguns movimentos que havia aprendido assistindo filmes pornográficos ou Discovery Channel já que o coito é coito para qualquer mamífero. Ela desceu a mão em seu pau, ele virou-a com força, simulando raiva e tesão e ali perdeu sua virgindade sem prazer nenhum enquanto ela gemia e chorava.
Aos 21, depois de formar-se e já possuir uma certa carreira sólida em comerciais televisivos nasceu uma sensação rara dentro dele. Queria sentir. Começou a busca em coisas simples como filmes de comédia e Stand-ups, depois passou para shows de sexo e suspensão, tatuou as costas inteiras mas nada ativou nenhum  sentimento real dentro dele. Em tudo os olhos ficavam vidrados analisando friamente cada pedaço dos espetáculos assistidos e tentando associar os mesmos a conceitos que ele aprendera a simular na faculdade como humor, alegria, dor e prazer.
Nada. Não sentia nada.
Caminhava solitário e bem vestido pela noite da cidade buscando alguém que fosse igual a ele. Não tinha amigos de verdade mas muitas pessoas o tinham como eterno confidente então seu telefone insistia em tocar ou os bares que ele frequentava  insistiam em estar sempre com algum presente que lhe conhecesse e desejasse confessar-lhe todos os sentimentos do mundo.
“Eu mataria para ter aquela mulher novamente, Pedro. Mataria para voltar a sentir alguma coisa como senti com ela.”
E foi no final dessa noite, voltando para casa que um mendigo morreu com o pescoço quebrado pelas mãos de Pedro enquanto ele tentava sentir alguma coisa pela morte. A morte em si não havia lhe trazido nada de bom, mesmo depois de tentado diversas maneiras diferentes, diversos corpos diferentes. Mesmo depois de ter torturado todo tipo de ser humano, de mendigos a abastados, de freiras a putas, de padres a pedófilos de adultos a bebês. Desistiu da morte e da tortura seguida de morte depois de ter tentado as formas mais violentas, virulentas e repulsivas que um ser humano poderia imaginar. Mesmo depois de alimentar uma mãe com sua própria cria semi viva a ser fatiada defronte o pai que chorava e suplicava por clemência ele nada sentiu e resolveu abrir mão desse método falho. Limpou o porão que usava para tais práticas, moeu os restos mortais e alimentou seus quatro cachorros com essa família de retirantes que havia visto naquele “homem tão bondoso” a chance pro filho que viria a nascer. Tomou um banho, vestiu sua melhor roupa e foi para seu bar pensar em outra forma de sentir alguma coisa.
Pediu gin e tônica pela maneira como o amargo mexia com suas papilas gustativas e a como o gin turvava levemente sua visão e lhe causava uma lentidão racional. Enquanto respondia mecanicamente as perguntas do seu pseudo amigo bartender uma morena adentrou-se pelo bar. Ele sabia que ela era uma nota 10 para os padrões de beleza dos dias atuais mesmo ele não podendo achá-la bela já que a beleza na verdade não é vista, mas sim sentida. Seu sucesso com as mulheres era claro. Um ótimo ator sabe como impressionar qualquer ser humano, principalmente uma mulher que busca eterna e avidamente por alguma coisa que valha a pena chamar de amor. Ela pede um drink, ele oferece um cigarro, ela pede uma saideira, ele oferece um amasso, ela pede mais um sorriso e já no hall de entrada da sua casa ela sente-se completa e loucamente apaixonada por ele. O homem perfeito de todas as maneiras, do bom gosto aos trejeitos “naturais” nos momentos exatos, o carinho bem dirigido, a pegada forte quando ela queria fraca, essa selvageria arrogante e prepotente a deixa de joelhos e de joelhos ela lhe sorve o pau que minutos depois lhe fornece os mais longos orgasmos já sentidos. Líquidos escorrem das suas pernas, dos seus olhos. Ele olha para aquele corpo descontrolado completamente controlado por ele babando como uma débil mental que não comanda mais a própria vida e sente um asco tremendo.
Para e pensa.
Sentiu um asco tremendo.
Ela olha assustada para ele.
“Sai daqui. Você não vale nada.”
“Mas, mas, mas... eu te amo. Vo-vo-você é a melhor coisa que já me aconteceu”
Ele acende um cigarro e prepara mais um drink enquanto pega as roupas dela e junta com cuidado na cama.
“O que você sente, mulher?”
“Como se você tivesse me levado para o melhor lugar do mundo e depois me matado por dentro. Sei que depois de você nunca mais vou sentir mais nada”
“Exato. Agora se veste e sai.”
Ela já sai sem um sorriso no rosto, sem expressão de dor nenhuma, sem mais nada por dentro.
Ele vai até a varanda e um leve sorriso desponta em sua boca.
Ele sente alegria.
Dias depois ele volta àquele mesmo bar e lá está ela. Sentada tomando um gin e tônica com os olhos apagados a conquistar algum homem. Algum homem que estará lá na semana seguinte com os olhos apagados pronto para apagar a alma de mais alguém.
E assim Pedro descobriu como sentir e a cada semana sentia com uma mulher diferente, sentia o asco do ápice da entrega e da demência feminina e a alegria quando via a morte em vida daquele ser.
Pedro secava as almas para inundar seu corpo ausente de espírito.

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